Tenho acompanhado um “debate”, se assim posso chamar, em torno de liturgias, adoração, ordem de culto, músicas, hinos, instrumentos e parece sem fim tudo isso. Sou do tempo em que o violão começou a ser introduzido no templo, pois até então, apenas era autorizado nas reuniões da “Mocidade”. Bateria, essa misericórdia, demorou ainda muito mais.

Hoje, na realidade, percebo uma verdadeira “batalha” onde o fogo amigo se espalha e atinge a muitos com seus estilhaços da ausência de bom senso e o desejo de prevalecer. Isso deve ser visto como triste e lamentável. Nenhum reformador desejou isso, nenhum grande líder almejou prevalecer para que o outro irmão “perdesse”. Tenho tido o privilégio de andar pelo mundo e continentes e ver o quanto essa discussão é ineficaz.

Certa vez assisti a um culto na internet em que, se eu fechasse os olhos, voltaria ao século passado, lembrando que eu, sou do século passado! As mesmas músicas, a mesma forma de culto e liturgia que eu, mesmo sendo daquele século, não me encaixo mais. No entanto, outros se encaixam e adoram verdadeiramente a Deus daquela maneira. Mas qual o problema então Bispo? O problema é o desejo incontido de prevalecer e afirmar aquilo como “A” forma de adoração verdadeira.

Há um livro de D.A. Carson e Tim Keller chamado “Louvor” publicado pela Thomas Nelson, e um capítulo foi escrito por um anglicano, Mark Ashton onde ele tenta repensar o que Tomas Cranmer pretendia quando ele construiu o Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana. Ele diz isso.

“nunca foi o desejo de Tomas Cranmer congelar a liturgia anglicana por séculos para acabar perdendo sua relevância cultural e reapresentar a obscuridade da igreja, aspecto que ele trabalhou duro para remover[1]

Deveríamos enxergar isso com os corações mais abertos, com maior flexibilidade, maior humildade e, menos espírito de julgamento. Tenho acompanhado a trajetória da adoração na igreja há algumas décadas e me entristece observar o juízo feito facilmente pelos que se consideram “históricos” contra os que eles consideram modernos (Worship) é o codinome dado e, vice-versa. Conheço adoração histórica vazia, repetitiva e sem espírito da presença e ao mesmo tempo observo ambientes do chamado show gospel das “Church” cheios de Deus e, vice-versa também.

Apresento aqui 5 aspectos que não podem faltar em nenhuma celebração, não espero sua concordância, mas espero seu bom senso, vamos lá?

  1. ORAÇÃO

Existem celebrações quase completamente desprovidas de oração. A única oração em todo o serviço as vezes é depois do ofertório ou quando pregador termina o sermão.  Não há orações de confissão, de intercessão, de ação de graças. Este é um padrão que temos visto crescer. A oração nos cultos se tornando rara e mínima em vez de comum e intensa. Me lembro de uma igreja que visitava na minha juventude por ter amigos ali. Havia oração no começo do culto é verdade. O pastor ou dirigente dizia “Vamos iniciar o culto com a oração do irmão “Fulano”. Confesso que morria de medo de que ele me chamasse um dia.

Sou anglicano e a liturgia anglicana não dispensa os momentos de oração no culto e a intercessão é parte intensa de nossa liturgia. Nossas intercessões vão desde o mundo, as nações, as missões o país, os governantes, presidente, governador, prefeito e autoridades e fazemos isso nominalmente, independentemente de quem sejam. Seguimos orando pelos enfermos, pela igreja, liderança e “descemos para a igreja local e seus líderes. Essa oração pode ser sim apenas um rito e se tornar algo enfadonho e protocolar. Nas nossas igrejas não permitimos isso e, clamamos com toda congregação, por cada um dos motivos

Um culto sem oração é um címbalo que retine

2. LEITURA DAS ESCRITURAS

Outro elemento que está se rareando nas celebrações é a leitura das escrituras. Houve um tempo em que a leitura da Bíblia nos cultos era dividida em 4 porções. Leitura do AT, dos salmos, das epístolas e do evangelho. Isso teve seu sentido no passado onde as pessoas sequer tinham acesso a bíblia.  

Na época, foram impressas 3.000 cópias – considerada uma grande tiragem para o período. Cada exemplar custava entre meio gulden e 1,5 guldens, a moeda do sul da Alemanha. Era uma bela soma em dinheiro, mas bem mais barata do que as versões anteriores do Livro Sagrado. “Antes de Lutero, você tinha que pagar o equivalente, hoje em dia, a um Mercedes Classe S por uma Bíblia impressa. No século 16, uma Bíblia de Lutero era vendida pelo mesmo preço que uma geladeira hoje em dia”, compara o teólogo Hartmut Hövelmann…[2]

Nos cultos se lia as lições do lecionário para que a Bíblia fosse exposta ao povo que também era em sua maioria analfabeto. Não vejo problema em se fazer essa leitura, desde que a mensagem do dia esteja nelas, para que todos possam refletir e não apenas ler. Mas o salto das 4 leituras para praticamente nenhuma, foi longe demais. Existem igrejas que seguem fazendo as 4 leituras e, muitas vezes pregam em um texto diferente, elevando-as para 5. Sem exageros e tornando a coisa mais dinâmica, todos tem acesso a bíblia que pode ser lida a qualquer momento. Nas nossas celebrações lemos os textos que serão expostos no sermão.

3. CONFISSÃO DOS PECADOS E CERTEZA DE PERDÃO

Tradicionalmente, os cultos protestantes incluíam uma confissão de pecados associado claro ao perdão de Deus. Vejo aqui em minha mesa o manual de liturgia da Igreja Luterana que, assim como as demais igrejas históricas possuem em seus ritos o momento de confissão, onde um dirigente conduz a congregação e em seguida clama pelo perdão de Deus. Isso é muito bom, traz alívio e renovo a cada um. É um momento solene, mas não triste e o perdão deve ser visto com a maior alegria possível. Observo que o problema as vezes está na maneira que se conduz. Já participei de momentos de confissão e perdão onde tive vontade de sair da igreja pelo peso de culpa que se colocou sobre as pessoas. Solenidade não é sinônimo de espiritualidade nem de reverência, a alegria é reverente também.

4. PREGAÇÃO ONDE A BÍBLIA É EXPOSTA

Quando Paulo escreveu ao jovem pastor Timóteo, ele o instruiu a pregar a Palavra

Na presença de Deus e de Cristo Jesus, que há de julgar os vivos e os mortos por sua manifestação e por seu Reino, eu o exorto solenemente: Pregue a palavra, esteja preparado a tempo e fora de tempo, repreenda, corrija, exorte com toda a paciência e doutrina. Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, sentindo coceira nos ouvidos, segundo os seus próprios desejos juntarão mestres para si mesmos. Eles se recusarão a dar ouvidos à verdade, voltando-se para os mitos. Você, porém, seja sóbrio em tudo, suporte os sofrimentos, faça a obra de um evangelista, cumpra plenamente o seu ministério. 2 Tm 4:1-5

Os cristãos há muito entenderam que a melhor maneira de pregar a palavra fielmente é pregar de tal forma que o ponto do sermão corresponda ao texto. O pregador precisa entender não apenas a redação da passagem, mas a intenção do autor em escrevê-la etc. Isso leva à uma interpretação e aplicação mais fiel. O advento do “Coach Brasileiro”, algo bem tupiniquim, uma verdadeira jaboticaba, as pregações tem seguido essa linha e assim seguem em diferentes igrejas, históricas, contemporâneas etc. o pregador fez o curso de coach e esqueceu o conteúdo da Bíblia. Escolhe alguns textos bíblicos e citando-os aqui e ali, segue afirmando o positivismo geral…você pode, você consegue, você vai sair daqui hoje vencedor… e por aí vai.

Por outro lado, os expositores radicais seguem dando aulas nos púlpitos e pouco aplicam à vida das pessoas. O púlpito nesses casos se tornou uma academia e quanto mais títulos, melhor. Mas as pessoas seguem dizendo: “o que isso tem a ver com minha vida? A pobreza de aplicação dos expositores e a pobreza de conteúdo dos coaches, tem gerado uma igreja desnutrida. Alguns históricos desnutridos enquanto outros “modernos desnutridos”. Precisam todos saber que quando um pregador não tem cultura bíblica se percebe facilmente na sua exposição.

5. ADORAÇÃO CONGREGACIONAL

Todos sabemos e se não, devemos saber que o objetivo das bandas de louvor é servir e facilitar, não atuar e performar. Isso não se discute. No entanto a música tem uma parte decisiva na adoração comunitária bem como no evangelismo. Eu me converti aos 23 anos de idade, era fã do rock e da boa mpb. Um dos grandes obstáculos a minha conversão foi a música nas igrejas. Levava minha mãe ao culto e as vezes ela pedia para eu ficar e eu ficava, mas aquilo era um grande sacrifício, sim aquela música me torturava. Me aproximei de cristo quando conheci os “meninos de Deus” (Jesus people) e por quê? Porque a música deles me chamou a atenção.

Para alguns o canto congregacional deve ser de tal forma que as vozes do povo sobem mais alto que os instrumentos e dos ministros da música. Muitos se queixam que as igrejas se afastaram dos hinos, canções que dizem tinham verdade profunda definida para melodias simples, mas belas. Concordo em parte os hinos clássicos são peças musicais. E podem ser usados hoje, se adequando em estilo e melodias mais ajustadas aos tempos atuais. Igrejas onde se canta a capela ou no máximo com um piano defendem que esse é o modelo “certo” e aí vem mais uma vez o erro. Será possível que não se compreendeu que não há estilo, volume, instrumento ou qualquer outra coisa que possa definir uma verdadeira adoração? Ninguém pode julgar a adoração de ninguém pois ela se define no coração. Existem címbalos sonoros nas igrejas históricas com os hinos assim como em qualquer outra igreja contemporânea. Quem se preocupar com repetição, com clamor pessoal etc. deve dar uma passeada nos salmos ou retirá-los de suas bíblias pois talvez pareça “worship” demais.

A Liturgia Anglicana pede que haja equilíbrio nas celebrações e para isso existe um “esqueleto” uma “coluna vertebral” Que promove esse equilíbrio e que Tomas Cranmer sistematizou muito bem, e toda celebração deve ter:

  • Adoração
  • Orações e intercessões
  • Leitura da Palavra de Deus
  • Pregação Bíblica
  • Momento de ofertório

Enquanto houver o desejo de prevalecer e definir o que seja a “verdadeira adoração? Nos moldes culturais e denominacionais, deixaremos passar a oportunidade de exercer a nossa fé, agradar a Deus e ver o “O senhor acrescentando aqueles que irão sendo salvos”

Miguel Uchoa

Bispo Anglicano


[1] Ashton, Mark. louvor: análise teológica e prática. 1 Ed Rio de Janeiro? Thomaz Nelson Brasil.2017. P62

[2] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2022/01/15/oito-curiosidades-sobre-a-traducao-da-biblia-de-lutero.htm. Em 07.05.2022