A Igreja Evangélica brasileira lembra um caleidoscópio eclesiástico do tipo que, quanto mais se mexe, mais suas cores mudam e uma nova configuração surge. Não sou defensor da uniformidade. Sou Bispo Anglicano e minha denominação já me dá um pano de fundo de diversidade com a qual convivo e que creio ser salutar. Enquanto celebramos 500 anos da Reforma Protestante, precisamos por sobre este tempo um olhar que seja de celebração e que, ao mesmo tempo, seja autocrítico. Quando em 31 de outubro de 1517, o monge Matinho Lutero afixou 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, não fazia ideia de onde chegaria. Sua intenção mais sincera era restaurar a igreja e mantê-la Una, Santa, Católica e Apostólica. Não imaginava ele que aquele ato seria a causa da formação de tantas igrejas independentes e especialmente que geraria esse caleidoscópio eclesiástico de matiz eventualmente protestante. A Reforma deixou alguns postulados inegociáveis, a saber:
A Justificação pela graça mediante a fé (Efésios 2:8) – A doutrina da salvação pelas obras estava em destaque e a Reforma vinha e vem afirmar que isto é um engano e que a salvação procede da misericórdia de Deus. A Reforma disse: ela vem pela graça e a alcançamos exclusivamente pela fé.
A centralidade de Cristo (João 14:6) – O Papa se tornou a cabeça da igreja e autoridade inquestionável. O Vigário de Cristo. A autoridade estava nele, retirando de Cristo a centralidade que a bíblia lhe dava. A Reforma veio dizer que toda autoridade era de Cristo. (Mateus 28:18).
A Autoridade das Escrituras (2 Timóteo 3:16) – A tradição e o magistério sobressaiam-se frente à sã doutrina e era o que norteava as decisões da igreja. A Reforma conseguiu então restaurar a autoridade das Escrituras. A partir daí, surge a base onde se monta a Reforma Protestante.
Solá fide – Sola scriptura – Sola graça – Solo Cristo- Sole Deus Gloria
Tudo que fosse acrescentado seria periférico. Aqui começa a dificuldade da igreja brasileira de centrar a missão naquilo que, de maneira simples, deveria norteá-la.
Onde estamos como Igreja Evangélica Brasileira? Não é fácil identificar ou definir a Igreja Evangélica Brasileira. Ela é hoje uma Igreja confusa, que se distancia da Reforma Protestante numa perceptível rapidez. Esse vínculo está comprometido. O que trouxe a igreja até aqui é uma linha que não pode ser esquecida, sob pena de perdermos o fio da meada. Cabe a pergunta: onde estamos na identificação com a Reforma Protestante?
Onde estamos na Justificação pela graça mediante a fé? (Efésios 2:8)? Certo dia, voltando do trabalho, escutei a declaração de um pastor de uma grande denominação em uma rádio evangélica. Ele falava sobre salvação: “Você está pensando o que? Que a salvação é fácil? Só crer e pronto?”. Parei e esperei pelo pior que ainda viria: “Não é assim não, tem que se esforçar e se sacrificar”. “Não acredito no que estou ouvindo”, pensei, “um pastor protestante desconstruindo a salvação pela graça mediante a fé? Uma das principais colunas da Reforma?”. A Igreja Evangélica Brasileira receia anunciar a salvação pela graça porque acha pouco. É barato demais diante do que se criou como degraus para a salvação e os benefícios. Alguns motivos podem estar por detrás desse temor, a saber:
- Manutenção de membresia – A preocupação de crescimento numérico de alguns grupos é um esforço hercúleo. Crescer numericamente faz parte do mandato de Jesus, são vidas alcançadas, batizadas e ensinadas a viver a fé. Igrejas evangélicas brasileiras ainda exigem de seus membros mais do que Jesus exigiu.
- Usos e costumes – A imposição dos usos e costumes substitui a sã doutrina. Paulo apresenta sempre o evangelho da graça em contraposição ao legalismo. Para ele, o evangelho não é a observância de costumes, isso é obra demoníaca (1 Timóteo 4:1-3; Colossenses 2:20-23). O retorno à pregação exaustiva desse princípio e a prática intencional do ensino da graça mediante a fé é urgente. Para isso, os líderes deverão ter a coragem de assumir que nada além da fé é necessário para a salvação.
Onde estamos na centralidade de Cristo? (João 14:6): Na igreja da pré-reforma, a centralidade de Cristo estava distante de ser uma realidade. A idolatria e a busca constante de mediadores entre Deus e o ser humano era uma realidade. O magistério da Igreja tinha o papel de interpretar e transmitir o que deveria ser obedecido. Diante disso, o comprometimento da centralidade de Cristo estava decretado. Sem generalizar, o púlpito da igreja evangélica brasileira experimenta declínio no ensino da centralidade de Cristo. O centro de tudo acaba sendo uma personalidade. Aquilo que diz tem autoridade por ser “inspirado”. Cresce esse tipo de líder na Igreja brasileira. A “ditadura” do politicamente correto leva a exclusividade de Cristo para a salvação como algo intolerável. O receio de ir de encontro a esse pensamento e ser considerado intolerante amedronta alguns.
Onde estamos na Autoridade das Escrituras? ( 2 Timóteo 3:16): Quando comecei a ser discipulado pelos grupos da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB), entendi bem a recomendação de Paulo a Timóteo em 2 Timóteo 3:1: sem a Escritura não há cristianismo. É ela que nos alimenta da verdade, conduzindo-nos a uma espiritualidade sólida. Onde estamos neste particular? Não é uma resposta fácil, corremos o risco de uma avaliação limitada. Existem círculos onde a Escritura é ensinada com zelo e cuidado, mas existem outros onde ela tem sido esquecida e a intuição de pregadores (as) é colocada no padrão de autoridade escriturística. Martinho Lutero está diante da Dieta de Worms (1521), sendo levado à retratação por ter publicado suas 95 teses. Sua resposta foi corajosa:
“A menos que seja convencido pelas Escrituras e pela razão pura, e já que não aceito a autoridade do Papa e dos concílios, pois eles se contradizem mutuamente, minha consciência é cativa à Palavra de Deus. Eu não posso e não vou me retratar de nada, pois não é seguro nem certo ir contra a consciência. Deus me ajude, AMÉM.”
Fazendo essa declaração, ele dá início ao movimento da Reforma. Sua base é a Escritura. Buscando uma relação com a declaração de Lutero, admito que estamos nos distanciando do conceito da sola scriptura. A Igreja brasileira necessita urgentemente associar seu crescimento com o ensino das Escrituras. Não estamos nessa direção, precisamos assumir isso. O rigor pelas Escrituras não nos faz imunes à necessidade dos perdidos. O conhecido “amor pelas almas” parece não existir em alguns grupos ditos reformados. Estes optam por uma “exposição escriturística” sem contextualização, mas repleta de conhecimento que de nada alimenta a alma sedenta do ser humano. O resultado são igrejas ortodoxas nas Escrituras, de bancos vazios, onde a mensagem não encontra guarida nos corações. A análise das Escrituras de maneira mais profunda deveria encontrar nelas mesmas a maior razão para a expansão.Existem aqueles que entendem o apego às Escrituras como fundamentalismo. Esses têm até visão de expansão, querem ver a igreja crescer e estão dispostos a pagar um alto preço. A pregação nestes grupos é normalmente repleta de experiências pessoais, mais que em ensinos bíblicos. Vagueamos pelos extremos e nos afastam daquilo que seja uma igreja saudável na observação das Escrituras e a sua aplicação à vida.
Onde queremos estar? Onde exista uma igreja cuja virtude é ser a igreja que faz a história. Que cresça, ministre salvação pela graça mediante a fé, seja centrada nas Sagradas Escrituras , tenha Cristo no centro de sua vida e mensagem e que toda a Glória seja sempre tributada a Deus. Que enxergue a dimensão vertical, mas não esqueça de olhar na horizontal, na direção do ser humano e suas necessidades formando a perfeição da cruz na qual seu Senhor morreu. Uma igreja multifacetada em uma nação miscigenada, mas com raízes fundas. Que ela prevaleça no Brasil, e não nos deixe ser a igreja da maioria, sem que isso faça qualquer diferença na vida do país. Inegavelmente, há muito vigor nessa Igreja Brasileira, mas uma olhada nos postulados da Reforma Protestante ajudaria a fazer um caminho de volta em aspectos fundamentais de sua história, que a impulsionaria a uma nova arrancada com mais fidelidade aos seus laços históricos.
Bispo Miguel Uchôa